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Tateando criticamente a questão da “corrupção”

Do que se trata a “corrupção” ? Antigamente, a “corrupção” era relacionada à luta da luz contra as trevas. A alma virtuosa, bondosa a priori, “corrompida” pelo mal. Eva e Adão: o pecado original, entre outras metáforas típicas desta nossa banda do mundo.

Então, tem-se um viés moral. Uma produção histórica, cujos sentidos vão-se alterando ao longo do tempo em que a humanidade se reproduz e amplia seus domínios em territórios geográficos e tecnológicos.

Parte da “corrupção” eram os juros. Para o bem ou para o mal, a remuneração do capital financeiro tornou-se amoral, graças ao protestantismo, por um lado, e às necessidades de financiamento da grande indústria e dos Estados, por outro.

Sempre que aparece alguém falando das mazelas da corrupção, da demonização dessa coisa chamada “corrupção”, percebo-me ante uma carola falando sobre sexo por prazer, ou mesmo prazeres sem sexo. Sinto um retorno à fase pré-protestante.

Então, um dia desses passei algum tempo tentando achar alguma definição consistente sobre o que é, afinal, contemporaneamente, “corrupção”, que é dito, por alguns, como um dos grandes entraves para o “desenvolvimento”.

Encontrei apenas generalidades, tais como:

“Genericamente fala-se em corrupção quando uma pessoa, que ocupa uma posição dominante, aceita receber uma vantagem indevida em troca da prestação de um serviço.” (1)

Grafei o termo “vantagem indevida”, pois ele é polissêmico e carregado de conotações morais. O “devido” refere-se a uma vantagem obtida mediante a obidiência cega às leis ou às instituições em geral ? Quais atores concretos determinaram que a A é “devido” e B é “indevido” ? Por que ? Quais seus interesses em tal estado de coisas ?

“Corrupção" é um fenômeno de difícil definição. Conforme afirma Bardhan (1997), não é algo restrito ao setor público, também pode ocorrer no setor privado.” (2)

Pensando amoralmente e sendo materialista, corrupção pode ser um valor monetário (ou informacional) que um agente recebe ou cobra para efetuar uma transação econômica qualquer. Assim sendo, uma mercadoria cujo custo de produção fosse X, passaria a ser X + o valor recebido/cobrado.

Então, em tese, pode-se falar que se eliminarmos a “corrupção”, o custo do produto seria reduzido, voltando a seu valor de produção; o que, também hipoteticamente, se refletiria em um preço menor para o consumidor, caso o valor acrescido fosse repassado para o preço final, é claro.

O que é uma vantagem devidamente obtida? O que será uma vantagem indevidamente obtida ?  Um problema concreto para ajudar a pensar é sempre bom.

Existe uma relação simbiótica entre a indústria farmacêutica e os profissionais do campo da medicina. Laboratórios distribuem vantagens para que os médicos receitem/indiquem determinados medicamentos (em geral novos e mais caros) para seus clientes. Em troca, alguns ganham financiamento para suas pesquisas, viagens a congressos, publicação de artigos em revistas científicas, etc.

Não existe almoço de graça, nem viagens a congressos, financiamentos de artigos e pesquisas. Dessa forma, esses “incentivos” ao profissional que receita uma droga ao invés de outra estão incluídos na matriz de custo de cada mercadoria. Quem paga ? Ou o usuário direto do medicamento quando este o compra na farmácia, ou a população toda, quando é o governo que compra e distribui.

Pergunta: esse incentivo ao profissional médico é corrupção ?  O médico tem a possibilidade de receitar A ou receitar B, mas, se receitar B, ganhará um incentivo da indústria farmacêutica que aumentará seu bem-estar. Novamente: isso é corrupção ?

Há quem diga que o mercado pune o agente que corrompe, pois isso aumenta o custo. No exemplo acima, isso não é verdade, pois essa é uma prática comum, aceitável entre os agentes envolvidos. Aceitável moral e financeiramente.

Então, peguei-me fazendo um exercício mental: suponha que seja verdade que o que se chama “corrupção” aumente o preço final de um produto/serviço; suponha também que acabando com a “corrupção”, o preço final desse produto/serviço irá ser reduzido e sua qualidade permanecerá constante.

Se isso é verdade, TODOS agentes econômicos deveriam combater esse custo adicional que é chamado de corrupção. Por que ?  Por que todos agentes são consumidores e, sendo assim, todos seriam beneficiados com uma redução geral dos preços nos setores onde há corrupção. Ação estatal seria desnecessária, pois seria uma decisão racional de todos e de cada agente.

Só que não é assim. O Estado e organizações que são financiadas direta ou indiretamente por recursos financeiros estatais (a ONU, por exemplo), combatem ativamente a corrupção, como um exorcista persegue um ser possuído. Bom, já que é assim, temos um novo contexto de custos.

Em se tratando de ação estatal direta ou indireta, temos:

a) custo de estruturas e regras para combater a corrupção ;

b) aumento da perda de bem-estar médio da sociedade em função da necessidade de financiamento dessa estrutura de combate à corrupção;

c) aumento dos custos dos agentes envolvidos nisso que se chama “corrupção” em ações que garantam seus ganhos nas transações realizadas.

Então, faço-me friamente a seguinte pergunta: em países como o Brasil, o que custa mais caro ?  A tal “corrupção” ou a estrutura para combater a “corrupção” ?  Na democracia brasileira, do presidencialismo de coalizão, garantir votos no congresso mediante o incentivo de aprovação de emendas parlamentares não é tão corrupção quanto uma empresa pagar para ser escolhida em um contrato, ao invés de outra ?  Incentivos.

Incômodo isso, não ?!   Se amoralizarmos a tal “corrupção” e lidarmos com essa idéia vinculada à idéia de custo de transação (3), surge uma pergunta provocativa: o maior custo está na corrupção ou em seu combate ?

No caso brasileiro, será que acabar com os cartórios não seria uma medida economicamente mais efetiva para reduzir os custos de transação ?  Só que acabar com cartórios supõe uma mudança institucional mais profunda: sair do mundo da desconfiança a priorística e ir para o mundo da confiança (4).

            É possível entender, também, a corrupção como uma apropriação do total das rendas realizada por um agente econômico em função de uma posição estratégica no processo de compra/venda de produtos e serviços.

            Se assim for, eliminando-se o custo “corrupção” da matriz que compõe os preços finais de produtos e serviços, quais atores concretos apropriar-se-ão dessa “sobra”, dessa diferença ?  Os que sobrevivem em função do combate à corrupção não são explícitos, mas induzem-nos a crer que se não houvesse corrupção a renda que foi apropriada indevidamente pelo agente será convertida em mais ou melhores políticas públicas, haverá mais dinheiro para a educação, saúde, etc.

            Já vimos que isso não é de todo verdade, pois parte dessa “sobra” ajuda a financiar/manter os atores que combatem a corrupção. Haverá algum saldo depois dessa transação ?  Se há, quanto é ?  Para onde vai ?  Quem se apropria de fato dessa renda, uma vez que há um deslocamento de destinatário ?

            Friamente penso:  há alguma sociedade humana em que os custos de transação não incluam “incentivos” para agentes que estão em posição estratégica nos processo de produção/compra/venda/distribuição de produtos e serviços ? Que não incluam jantares, viagens, eventos, etc. Na verdade, parece um jogo de sedução... Uns são românticos, outros vão direto ao ponto. É possível uma grande transação comercial ser totalmente asséptica ?

            Interessante ver os resultados da pesquisa de PERCEPÇÃO da corrupção (Percebam: percepção !) de 2013, organizada pela International Transparency (5)   Quantificar monetariamente essa coisa conceitualmente imprecisa, não é lá algo muito sério, convenhamos.

            Metodologicamente, essa pesquisa NÃO é sobre corrupção em geral, mas tem o viés de se restringir ao setor de cada país. Pessoas de cada país são inqueridas sobre se elas crêem que a administração pública nacional é corrupta ou não. Apesar de todas as limitações imagináveis, os resultados dão-nos alguns indícios sobre algumas coisas.

            Os países onde os entrevistas acreditam que o Estado é pouco corrupto são aqueles, em sua maioria, onde há menos iniqüidade de renda e onde o “Wellfare State” existe: Dinamarca, Nova Zelândia, Finlândia, Suécia, Noruega, Suíça, Holanda, etc. Além da equidade, ressalto que são povos “velhos”, no sentido que esses grupos sociais são a resultante de um processo histórico de longa duração.

            Na zona intermediária encontra-se o Brasil, China, Bósnia, Kuwait, Grécia, Itália, África do Sul. Chama-se a atenção que todos eles são marcados pelo autoritarismo de seus burocratas e demais “elites”. São países ricos, mas a renda é extremamente concentrada na elite da burocracia ou no empresariado (em geral famílias tradicionais).

            No fim da fila, como era de se esperar, os países que foram colônias (ou semicolônias) dos países Europeus ou foram cenário de disputas durante a Guerra Fria: Somália, Sudão, Haiti, Afeganistão, Líbia, Iraque, Síria, etc.




Vendo o mapa acima, pergunto-me com certo ceticismo em relação a determinados jargões: será, realmente, que é a “corrupção” que dificulta, impede ou qualquer outro adjetivo similar, o “desenvolvimento” de um país ?

Um processo assistemático e inicial de revisão de idéias é algo doloroso, mas penso ser necessário, pois a pergunta sobre quem ganha quem perde nesse jogo de poder chamado "corrupção" não é suficientemente claro. E nesse processo, incluo os que combatem a corrupção.

Algo próximo a uma definição razoável, mas na verdade, uma identificação de efeitos, diz: A corrupção, portanto, é exercida onde existem funcionários com alto poder decisório e onde os custos de uma decisão contrária ao interesse do indivíduo são altos (perda de uma licitação, prisão, multa, etc.). A corrupção funcionaria como um "redutor de incerteza" (Mény, 1995:17) dos resultados de um determinado processo, como uma das formas de gerenciar a probabilidade. (6)

Talvez esse seja um bom fio da meada. Talvez...

Há outra possibilidade, uma outra ponta do fio, ou mesmo um outro fio: a corrupção como custo, como preço. Rothbard, partindo da concepção de que suborno é a venda, por um funcionário do governo, da permissão de prosseguir com as trocas, dada uma restrição feita pelo próprio governo, em seu "Governo e mercado", afirma:



Por ser ilegal, o suborno de funcionários públicos praticamente nem é mencionado nas obras econômicas. A ciência econômica, entretanto, deveria analisar todos os aspectos de troca mútua, sejam essas trocas legais ou ilegais. Vimos acima que o “suborno” de uma empresa privada não é suborno de modo algum, mas apenas o pagamento do preço de mercado pelo produto. O suborno de funcionários públicos é também um preço para o pagamento de um serviço. Que serviço é este? É a incapacidade de fazer cumprir a legislação governamental que se aplica, particularmente, à pessoa que paga a propina. Em suma, a aceitação de suborno é equivalente à venda de autorização para ingressar num determinado ramo de negócios. A aceitação de um suborno é, portanto, praxeologicamente idêntica à venda de uma licença do governo para iniciar um negócio ou profissão. E os efeitos econômicos são semelhantes aos de uma licença. Não existe diferença econômica entre a compra de uma permissão governamental para produzir via a aquisição de uma licença ou mediante o pagamento de funcionários públicos de maneira informal. O que o subornador recebe, portanto, é uma licença oral e informal para produzir. O fato de diversos funcionários do governo receberem o dinheiro nos dois casos é irrelevante para nossa discussão.

A extensão da atuação de uma licença informal como concessão de privilégio monopolista depende das condições sob as quais ela é concedida. Em alguns casos, o funcionário aceita um suborno de alguém e, na realidade, lhe concede um monopólio de uma determinada área ou serviço;  em outros casos, o funcionário poderá conceder a licença informal para quem estiver disposto a pagar o preço necessário. O primeiro é um exemplo de uma clara concessão de monopólio, seguido por um possível preço monopolista; neste último caso, o suborno age como um imposto lump-sum (imposto fixo per capita), penalizando os concorrentes mais pobres que não podem pagar. São forçados a deixar os negócios por conta do sistema de suborno. No entanto, devemos lembrar que o suborno é uma consequência da proibição de uma determinada linha de produção e, portanto, serve para atenuar alguma perda de utilidade imposta aos consumidores e produtores por meio da proibição governamental. Dado o estado da proibição, o suborno é o principal meio pelo qual o mercado se reafirma; o suborno leva a economia mais perto à situação de livre mercado (pp. 99-100).
 

Um olhar atento e com uma carga de valor minimizada, pode facilitar uma compreensão mais adequada deste fenômeno mundial e que por acá perdura de forma explícita e implícita desde os 1500, se é que os nativos que habitavam antes da vinda dos Europeus e Africanos não faziam uso deste mecanismo universal de troca.







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(6) http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88391999000300007&lng=en&nrm=iso




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