Fevereiro de 2014
Como era de se esperar, o programa “Mais médicos” virou arma
no embate eleitoral de 2014, tanto para a situação, quanto para a oposição.
Do lado oposicionista, vemos representantes da oligarquia e
do latifúndio defenderem com afinco, do dia para noite, os “sagrados direitos
trabalhistas”. Paradoxos só possíveis quando estão em jogo os corações e
mentes que votam.
O médico, latifundiário e deputado federal
Ronaldo Caiado, um dos fundadores da União Democrática Ruralista (organização
que combate a Reforma Agrária) e a dissidente Cubana Ramona Rodriguez. Vivemos
o que outros países vivem em Olimpíadas, quando atletas Cubanos resolvem fugir
do regime de partido único.
Por outro lado, parte da imprensa
nacional afirmou que o objetivo da dissidente é ir para Miami, onde poderá
adquirir e exercer os direitos trabalhistas dos EUA, que são um dos maiores
causadores do atraso econômico de seu país de origem.
O
jogo eleitoral ainda não começou oficialmente, mas os preparativos indicam uma
disputa quente.
Algumas implicações
importantes do programa Mais Médicos
Penso que o Mais Médicos tem implicações que vão além de simplesmente ofertar serviços que estavam indisponíveis para parte da população brasileira, conforme apontei em outro texto sobre o Mais Médicos. Abaixo, uma pequena lista do que considero mais relevante.
1) Tornar visível um problema importante que existe há
muito tempo, mas nunca foi percebido pelo Estado como um problema: o perfil do técnico formado em medicina e a
distribuição espacial deste profissional ao longo do território.
2) Dessacralização do profissional médico, que é um agente
econômico como qualquer outro: move-se por interesse, não por moral ou
solidariedade. Isso é muito, muito importante, em minha opinião.
3) Aprendizado no que se relaciona a acordos
internacionais onde pessoas estrangeiras ofertam serviços de saúde antes
parcialmente oferecidos por brasileiros: evidencia que, numa sociedade de livre
mercado, mecanismos de mercado funcionam contra monopólios, e os médicos têm
poder de monopólio.
4) Uma das formas de se combater um monopólio é importar
os bens e serviços que o monopolista não oferta, pois não é de seu interesse
ofertar. Essa solução é de curto prazo, a solução estruturante é quebrar o
monopólio, ou enfraquece-lo por meio da regulação.
5) O Brasil necessita de técnicos formados em medicina que
saibam clinicar, que saibam e queiram atender a população pobre e que reside
longe do conforto dos consultórios ricos em tecnologia, mas também precisa de técnicos
médicos especializados, que lidem com a tecnologia de ponta. Mais dos
primeiros, menos dos segundos, talvez seja a forma algébrica mais adequada para
nosso contexto nos próximos 30 ou 40 anos.
6) Introdução na Agenda da Academia, de estudos sobre o papel
social, econômico, cultural e político de algumas corporações de ofício, tais
como médicos e advogados, desde a vinda da Corte Portuguesa até os dias de
hoje.
Indo um pouco além
da importação temporária de serviços e profissionais médicos
Em tese, importar serviços profissionais médicos para
atender a demanda de atendimento na atenção primária à saúde (atenção básica) é
uma medida temporária, de transição.
Transição de onde para onde ?
Vivemos uma situação onde o processo de produção de um
técnico em medicina tem inúmeras resultantes: os extratos sociais mais ricos se formam em
medicina; os formados, obviamente, vão atender seus pares; miram a Europa e os
EUA (centros tecnológicos), não o Complexo do Alemão, ou o condomínio Sol
Nascente; experiência clínica é preterida em relação aos instrumentos
tecnológicos de diagnóstico diferencial, luta por ampliação do monopólio da prática profissional, etc.
Isso torna o processo caro e do ponto de vista da realidade
social, econômica e epidemiológica da maioria da população brasileira,
ineficiente e ineficaz, salvo os serviços de alta complexidade (transplantes,
por exemplo). Reduzir os custos dessa formação, tanto para o Estado, quanto
para as famílias, é fundamental. Sem isso, o tipo de médico que formaremos
amanhã será o mesmo do formado ontem e hoje.
A médio e longo prazos, medidas como essa tendem a alterar o
perfil sócio-econômico dos que conseguem entrar nas faculdades de medicina:
hegemonia dos setores ricos da sociedade, o que vai se refletir nas escolhas
individuais de ONDE, COMO, logo, PARA QUEM, vai-se ofertar os serviços aprendidos
durante sua formação. Vivemos em uma economia de mercado, com livre circulação de mercadorias e serviços, não ?!
É um bom momento para a sociedade brasileira, incluindo o
Estado, esse processo elitista de formação de técnicos em Medicina. Elitismo
esse que começa com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, a distribuição
de propriedades, financiamentos para formação na Europa, honoríficos como "doutor", entre outros indicadores concretos e simbólicos.
Figura 1. Medidas estruturantes para solução do problema que
originou o Mais Médicos
Fonte: produção do autor, 2014
Em contrapartida, o Estado brasileiro deve
prover melhores condições de vida, incluindo urbanização e escolarização para o
conjunto da população, o que facilita o trabalho dos profissionais de saúde,
inclusive os médicos. Além disso, as formas de comprar insumos para o trabalho
dos profissionais de saúde têm que ser alteradas, tornando-as mais ágeis, além
de medidas que profissionalizem a administração dos estabelecimentos e serviços
de saúde. Um bom começo seria separar, de fato e de direito, o exercício da
administração da atuação na assistência e na atenção à saúde.
Conhecendo bem a
nós, brasileiros, e o poder do monopólio médico em nosso território, qual é o risco ?
Se nossa política relativa ao Mais Médicos for bem sucedida, o
que saberemos de forma quantitativamente consistente em 1 ou 2 anos, ela tem que acabar quando as
causas de sua gênese acabarem:
a) quando
tivermos um técnico em medicina que tenha conhecimentos suficientes e adequados
para lidar com a realidade da população brasileira;
b) quando
houver políticas públicas que criem os incentivos necessários e suficientes
para que o profissional preste seus serviços nos diferentes territórios que
compõem o Brasil, do jeito que são.
Logicamente, uma vez acabadas as
causas, a solução torna-se inútil. No entanto, a superação das causas envolvem
questões de ordem social, política e econômica que existem há alguns séculos, o
que exige paciência, tempo. Um tempo diferente do tempo do calendário
eleitoral.
Uma vez não eliminadas as causas
estruturais que fizeram surgir o programa Mais Médicos, há duas conseqüências
gerais possíveis:
1) o
programa não atende a demanda social existente e é extinto ou modificado de tal
forma que reconhece-lo será impossível;
2) o
programa funciona, atende a demanda da população existente, o que reduz a
pressão política sobre políticos e burocratas e sobre a corporação médica.
Dada nossa história, nosso jeito
de fazer as coisas, o cenário da acomodação parece-me razoável. Isso significa
que os diferentes interesses se acomodarão, se ajustarão mutuamente e a
importação de profissionais médicos para atender os mais pobres pode vir a ser uma
prática mais longeva do que de fato deveria ser.
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Caro Daniel, parabéns! Achei seu texto extremamente rico e útil para nossas reflexões no tempo que estamos vivendo. Vou divulga-lo. Abraços. Paulo
ResponderExcluirObrigado. Um elogio seu é um incentivo.
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